terça-feira, 14 de maio de 2013

SEM ELA



Foi o primeiro dia das mães sem ela. Sem ouvir dizer:
 – Que bobagem esse negócio de “dia das mães”! Posso ir embora?
Não gostava de comemorações. Não gostava de flores. Nem de perfumes. Dizia orgulhosamente que nunca tinha usado maquiagem. Não se importava com roupas, nem gostava de viajar.
 – Em todos os lugares existem pessoas, carros, lojas... Qual a diferença?
Não gostava de novelas.
 - As pessoas brigam o tempo todo...
Gostava de musicas. Gostava de cantar e dançar. Gostava da vida do seu jeito. E dizia:
-Todo mundo morre, menos eu. Acho que perderam minha ficha... A vida é tão boa!
Talvez estivesse dizendo pra ela mesma.

Quando criança se considerava feia, jovem queria ser cantora e foi impedida pela minha avó (traumatizada que era com a vida de altos e baixos, que passou com meu avô compositor). Casou sem amor. Perdeu seu filho de 23 anos num acidente. Perdeu seu marido. Perdeu a juventude que ela tanto amava e com o passar dos anos, perdeu a visão.
Entre tantas perdas, foi perdendo a razão aos poucos e ganhando a pior das doenças. Aquela que ainda não tem cura, principalmente quando se descobre com mais de noventa anos. E continuou perdendo.

Cada dia perdia um pouco a vida, como alguém que se despede vagarosamente, discretamente, tristemente. Justo ela, independente, excelente negociante, que adorava cantar, dançar, colecionar as gravações de Orlando Silva e na juventude, namorar. Perdia sua dignidade.

Tudo foi feito, tudo foi tentado, mas ela estava de partida. Não havia quem pudesse impedir.

Na véspera do natal eu disse:
- Que pena. Justo na véspera de natal e você aqui ainda no hospital...
Ela respondeu:
 - Grande coisa... Não gosto de natal.
E quando eu falei que voltaria no dia seguinte a ultima coisa que eu ouvi, foi:
- Mas vê se não chega tarde, viu?
Apesar de ter prometido que não chegaria tarde, eu cheguei tarde, sim. Quando cheguei, ela já tinha ido.
No dia de natal.
É. Ela nunca gostou de natal.

Acharam a sua ficha.